19 janeiro 2009

«D'este viver aqui neste papel descripto»

O livro de António Lobo Antunes, "D'este viver aqui neste papel descripto", foi apresentado na Gare Marítima de Alcântara, em Novembro de 2005, local escolhido para evocar os militares que ali embarcavam para o Ultramar.
Trata-se de um livro que reúne as cartas que António Lobo Antunes escreveu a Maria José, a sua primeira mulher, enquanto esteve na guerra em Angola.
O livro foi apresentado por Joana e por Maria José, as duas filhas do escritor, que organizaram a obra depois de a mãe, entretanto falecida, ter autorizado a publicação das missivas que António Lobo Antunes lhe dirigira de Angola.
Para Joana Lobo Antunes, publicar as cartas permite "preservar a memória" do largo período (1971-1973) que o pai, então médico recém-formado, passou a dez mil quilómetros de casa.

António Lobo Antunes, que afirmou estar demasiado perturbado para falar aos jornalistas, disse apenas ainda não saber se vai reler as cartas e sublinhou que a sua união aos antigos colegas se deve ao facto de terem passado "muito tempo a morrer juntos".

Joaquim Mestre, um ex-colega de Lobo Antunes, recordou os jovens que "apenas queriam ter o direito de voltar para o seu país" e disse que nunca esquecerá "o silêncio do quartel, quando os soldados recebiam as cartas e paravam para as ler".

"Faltam apenas 22 meses e meio", escreveu Lobo Antunes numa das cartas quando a sua estada em Angola ainda estava no início, mas já pesavam as saudades da mulher, que, após o nascimento da filha, partiu com a criança para se juntar ao marido.
O medo de dormir e não voltar a acordar ou de se levantar e nunca mais regressar à cama e os gritos de um soldado quando pisava uma mina e ficava mutilado foram algumas das recordações de um cenário de pesadelo que ainda está vivo nas lembranças dos antigos recrutas.
Apesar deste quotidiano de angústia, as missivas escritas por Lobo Antunes para a mulher são cartas sobretudo marcadas pelo amor, pela saudade e por um profundo sentimento de ausência.
Ao permitir a publicação destas cartas, Lobo Antunes abre-nos, descaradamente, a porta à sua privacidade. Muitas vezes, ao longo do livro, o leitor sente-se um intruso na intimidade do autor. É impressionante a forma como o grande escritor exprime de forma honesta e comovente os seus sentimentos mais íntimos, uma intensa vida interior que só a solidão proporciona. O amor e a saudade são os temas gerais das cartas. O subtítulo do livro (“Cartas da guerra”) é, de certa forma, enganador. A guerra é sentida como um monstro estúpido e absurdo, do qual se evita falar. Por dois motivos: porque era vedado ao soldado transmitir informações relevantes e porque, para Lobo Antunes, falar da guerra era algo doloroso. É como se as cartas funcionassem como uma forma de escapar ao monstro e não para dar notícia dele. São desabafos íntimos e, acima de tudo, uma imensa manifestação de amor. Mas para lá da genialidade do escritor, da sinceridade das suas confissões, da bravura do soldado/médico, sobressai a grandeza do homem: um homem bom, delicado, sensível, altruísta, generoso – um homem comoventemente bom.

As quase trezentas cartas do médico alferes à amada Maria José (duas das quais dedicadas à filha recém-nascida, baptizada, por decisão de Lobo Antunes, com o nome da esposa) constituem uma espécie de diário do amor ausente, um amor suspenso, em pleno vigor da juventude, adiado por contingências históricas, por uma guerra absurda e inútil como soem ser todas as guerras. Ele parte deixando para trás um casamento recém-iniciado, a esposa grávida, impedido de acompanhar a gestação, o nascimento e os primeiros meses de vida da filha. «Porque não nos deixam ser felizes? Porque nos tiram assim alguns dos melhores anos da nossa vida?»

«Tudo visto e pesado, prós e contras, VEM, VEM JÁ. Estou farto de viver sem ti. Espero apenas que me digas o dia, e que seja o mais próximo possível. Espero-te com todo o amor do mundo. António.» (5 de Abril de 1972)

António Lobo Antunes esteve ao lado da sua "noiva" até aos últimos dias. Outra guerra. E a guerra confere a tudo, e ao amor também, um carácter de urgência. Outro António (Ramos Rosa) disse um dia: «Não posso adiar o amor para outro século».

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