14 setembro 2009

Ricardo Tellado Senra

Recordas-te da última vez que te escrevi? Foi há mais de 30 anos. Tinha descoberto o fascínio das letrinhas. Avisava-te eu que queria muito passar férias na tua casa.
Nessa casa soube as tuas histórias. Soube das histórias em tom de canção. Canção Galega.
A mãe contou-me essas histórias. Da fuga da Guerra Civil Espanhola. Do casamento com uma senhora do Porto. A mãe continua a contar-me uma história. Uma previsão. «Rui, estás cada vez mais parecido com o teu avô. De cara e não só. Vais ser igualzinho a ele. Guardas para dentro e só abres a boca quando a tempestade vem ai».
Lembro-me hoje dos passeios pelo Lumiar. Lembro-me do meu primeiro jogo de cartas. Lembro-me das conversas com o relojoeiro do Lumiar. Sabes, essa loja já não existe. Mas existe um condomínio muito bonito: uma merda de boniteza.
Aliás, acho que já não existe a rua onde passeávamos porque já não existem os passos que ma ensinaram. Reparaste no pormenor do «ensinar»? Sim, tu com o teu sempre presente espanhol, ias gostar agora de saber que continuo a adorar a tua terra Natal e que passo muito por lá. E eles lá não dizem mostrar, dizem «enseñar». Acho bonito. Assim como tu acharias bonito saberes que hoje sou professor e passo o tempo a (tentar) «enseñar». Ficas a saber.
Por causa do meu trabalho e da minha vida pessoal, precisava muito que me explicasses esse teu truque de seres respeitado sem nunca teres de dizer um único «não».
E lembro-me também da fama mal-afamada de Alfama onde tiveste a tua taberna galega. E quando chegava aquela hora de inventares as batalhas que travaste com venezuelanos? Que percorreste a América do Sul toda a defender o reino de Castela? Será por isso que o meu local de eleição, em todo o mundo, são precisamente os moinhos de Consuegra, onde D. Quixote via gigantes. Olha, são gigantes mesmo, sabias? Ainda bem que concordas comigo. Já agora, porque é que sempre concordaste comigo? Já agora, porque é que me apareces sistematicamente em sonhos?
Parabéns, avô. Farias hoje 100 anos. É quase hora de eternidade, não é?

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